Wednesday, November 10, 2004

Só nos temos a nós

"Depois, a chuva cessou e o frio voltou mais intenso. As noites tornaram-se claras e profundas, de uma limpidez transparente, rebrilhantes de estrelas sem conto, que só desapareciam horas altas, quando a Lua surgia do horizonte numa vermelhidão de sangue, que ia aclarando à medida que subia no céu, até se transformar num disco pálido, que vogava na frieza da noite, a caminho do outro lado da Terra. Era por estas noites vagarosas e frias, quando em casa tudo era silêncio e todas as criadas dormiam, extenuadas, no cansaço dos dias trabalhados, que Maria Leonor se levantava da cama, sem ruído, enfiando os pés descalços e friorentos numas pantufas. Abrigava-se numa longa capa, cobria os cabelos com um velho lenço de lã e abria a janela do seu quarto de par em par, tremendo de frio e de uma comoção indefinível.
Sentava-se, então, numa cadeira, enrolava as pernas arrepiadas num cobertor e deixava-se ficar durante muito tempo imóvel, sob a grande luz do luar que entrava pela janela. Quando, depois de algumas horas, a Lua se escondia detrás do beiral do telhado, deixando o quarto imerso em sombra, Maria Leonor levantava-se, entorpecida, esfregando as mãos gretadas do cieiro e ia deitar-se, tiritando. Não dormia logo. Ficava com os olhos muito abertos, tentando penetrar a escuridão, ouvindo na sala de fora o bater do relógio numa cadência monótona de quartos de hora sempre iguais."
José Saramago in Terra do Pecado

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