Sunday, September 19, 2004

Da calçada fria e cinzenta ela espiava o turbilhão de gente que lhe passava mesmo acima da cabeça. O sol iluminava e aquecia os dias, o ar, o tempo. As folhas caídas cobriam-lhe os pés sujos e aconchegava-se na esquina, mantendo um pouco de calor. O mundo passava, os momentos também, e ninguém o via. Mas ele estava lá. Via gente, e animais, e gente. Eles corriam, eles mancavam, riam e choravam e gritavam. E ele mantinha-se lá. Quieto. Sobrevivendo apenas, remendando a solidão do tempo com momentos de vidas que duravam apenas o seu campo de visão. Fracções de vidas inexistentes para além daquele momento que apareciam naquele espaço, e voltavam a desaparecer, tão rápido como surgiram.
A minuciosidade de um gesto e daquilo que está para além dele. Pormenores que encontramos naquilo que nos rodeia. Um sorriso dissimulado, um fugaz encontro de olhos que fica perdido na multidão. Observações implícitas nos movimentos do quotidiano, que tornam o banal tão mais curioso e diverso.
Ela olhava à sua volta e via coisas. Só coisas. Pilhas de livros que nunca tinha tido coragem de abrir, quanto mais ler. Caixas de CD’s vazias, e partidas no chão. Os CD’s estavam nas mãos de quem os tinha levado, às gotas, ao longo dos anos. Vasos de flores murchas e secas há meses. Meias sem par, sapatos gastos e bolas de cotão. Uma televisão e um DVD que a abstraíam da apatia do tempo. E olhava pela janela, coberta de pó, pensando que lá fora estaria melhor. À solta no tempo, à deriva, procurando qualquer coisa que nem ela sabia ser. Poderia levantar-se e saber o que era. Mas ali dentro, no meio das coisas, tinha a certeza daquilo que constituía a realidade. Podia prevê-la e organizar a vida em função dessa certeza. Estava segura e dali não saía, ficando sem saber o que poderia encontrar lá fora.
Pequenos textos descritivos são como o whisky. Se bebermos tudo de um trago, fica-nos apenas uma réstia de sabor que não distinguimos muito bem. Engolimos a doçura de cada palavra, de cada descrição minuciosa. O calor fica lá, mas o degradé que o causou fica perdido num sítio qualquer onde já não conseguimos encontrá-lo. Mas quando saboreamos, deixamos o líquido fluir pelas papilas gustativas e o olfacto desperto, ficamos com o sabor de quem acabou de viver um momento tão escrupulosamente distinto de qualquer outro. Apenas por um breve instante.

A New Something

Não sei porque quero este espaço. Apenas para soltar algumas palavras de vez em quando. Poderei usá-lo num dia e no dia a seguir ou apenas no mês a seguir. Sabe-se lá. Também não podemos prever e comprometer-nos com tudo, não?