Wednesday, November 24, 2004

Fake life

Desesperada, corria. Os passos, destrambelhados, no chão frio e liso e escorregadio, soavam na sala vazia e escura. Os olhos, habituados ao negrume, procuravam algo muito além daquilo que conseguiria fugir. Cravejados de lágrimas, já não sabiam fixar qualquer ponto, o vazio já ia muito longe. Os pulsos, cicatrizados a vermelho, denunciavam demasiados dias a despejar-se por todo o lado. Deixava rastos de sangue, de vísceras e de si. Já não era ela, era uma carcaça. De carne e ossos e líquido baço. Aspirinas e vómito e uma força sobrenatural de autodestruição. Deu a última corrida, e à soleira da porta caiu no chão. Eternamente inerte. Fustigada pela luz vibrante do sol de um dia novo de Outono.

Sonhos são coisas estranhas

Uma árvore. Um carvalho grande, majestoso. Folhas perdidas sobrepõem-se umas às outras, formam um chão estaladiço e acastanhado. Quero pisá-las.
Os seus ramos despidos filtram a última luz do dia. Como se agora fosse apenas uma negra silhueta com o céu azul e alaranjado, morno e terno do lusco-fusco. Quero sentar-me ao lado dessa silhueta e tornar-me uma silhueta também.
A sua sombra já está demasiado longa e desvanecida para se conseguir perceber onde acaba. Onde acabará a minha sombra quando me sentar debaixo da árvore?
Eu sei que essa fotografia da memória existe em algum lado, porque a vejo.
Mas onde? E a que hora?

sem título e sem fim

Ruga.
Estica-a até onde puderes. Um sulco gravado num rosto, numa memória, numa paisagem. Doces amargos e relvas verdejantes em conjunto. Coisas desconexas.
Um gorro de lã. Dentro dele cabelos soltos, alisados pela lã grossa de uma ovelha qualquer. Ou duas, até. Ou sabe-se lá quantas. Presos aos cabelos, uma cabeça e um rosto. Diferente de todos os outros, imaginem só. Uma combinação de nomes, dias, coisas dos dias, lugares, expressões, tudo que o torna único e só e igual a todos os outros e a mais nenhum. Nos olhos, a frescura dos dias, o brilho de qualquer coisa indistinta e o cansaço de demasiadas coisas.

Tuesday, November 23, 2004

Estou aqui

Uma ramela presa, não abras os olhos.
Não vejas que olho para ti todos os dias e ainda hoje não sei quem és e o que escondes.

Wednesday, November 17, 2004

Uma História

Eu sou um feijão amarelo, fui abandonado porque os meus irmãos eram
verdes e o meu pai era sportinguista. Lá em casa havia
um tomate, que dormia na mesma toca que uma cenoura, ficava cheio de negras quando
lhe perguntava: "hey, qual é o teu problema com legumes ingleses? É too much
para mim. Só tenho três opções: triturar-te, cortar-me às rodelas, ou apanhar a centopeia
infinita, esforço não seria... Vai para o Japão dentro de um pão. Eu ia
pagar-te um bilhete para a tomatina, mas preciso do € para a psicoterapia."
Não me fodas! Poupar dinheiro para isso é como poupar € para comprar farinha, Ai!
Da tua farinha queria muita gente. Vai-te sulfatar." Pegou nas trouxas e saiu.
E a cenourinha telefonou ao psicanalista: "Homosexualidade latente", disse
a ilustre personagem, que era uma cebola frustrada que não queria ser descascada.
Mas escreveu livros e ele e o bróculo eram amigos. Uma vez o escândalo
estalou na horta, porque se descobriu que eram eles que atraiam os ratos e faziam
tricot com lãs de ratos. Não consigo olhar para o Igor sem me rir. Agora
fizeste-me imaginá-lo com uma camisola de lã de ratos que participaram numa orgia da
pirataria de Marte. Sim! Porque ele e eles são marcianos promíscuos
que descobriram que, para recrutar pessoal, não basta tar atentos nas aulas e esforçam-se
por incutir superpoderes nos noviços que em pouco tempo ficam uns selvagens
através do álcool e gritaria e óculos com aspecto inocente. Depois, fingem ser iguais
aos geeks e Screech's deste mundo. Sabem-na toda, é o que é...
Pois. É que, dentro da nave invisível que tá estacionada por trás do BA,
aguardam os Darth Vaders que os levarão para o lado negro da Força
Aérea Portuguesa. Se um cavalo lhes der uma patada e estragar a maquilhagem
os dentes partem e em casa ninguém lhes ri. O dinheiro perde-se e os
sapatos ganham musgo e das raízes dos dentes partidos brotam fungos centenários.
O milionário prende-se ao chão e o ouro fica baço. As rugas sulcadas carregam
raios de sol perdidos em cremes inúteis. Os olhos, desabituados da luz, por elegantes
ramelas eram cobertos. Na escuridão remoía a dureza dos membros e
a posição em que cumpriam os mesmos deveres de sempre e todos os dias era
a dor de ouvir os filhso construir a casa da árvore nele. Os pregos cravavam-se
nas ideias perdidas de um dia qualquer. As tábuas assentavam pesadamente
nos ombros, não de gigantes, de um ser ressequido que temia o Outono
quando as folhas caíam, deixavam ver tudo aquilo que desfigurava os anos e as
vidas que guardava, sumítico. Uma vez segurou um homem com a língua
entalada nos dentes, e entupida na traqueia para evitar o vómito de paixões incoerentes.
Era um morto na boca, apodrecia e sujava-o por dentro. Ainda mais.
E à sua frente, decadente, viu tudo aquilo que era e fingia não ser. Um odor pungente
assolou-lhe o nariz, o ar pútrido reflectia um atrás, auguriava um negro
pequeno-almoço eterno de um dia que nunca chegará. E transformou-se numa simples
folha seca que se foi deteriorando na terra húmida entre vermes
sedentos de carne, sangue e lágrimas fétidas.
Há coisas que se podem dizer todos os dias.
Há coisas que se podem dizer sempre e ficam subentendidas na
cumplicidade. Quando se acabam as frases do lado.
The end of a beginning.
Joui & Jo

Wednesday, November 10, 2004

Só nos temos a nós

"Depois, a chuva cessou e o frio voltou mais intenso. As noites tornaram-se claras e profundas, de uma limpidez transparente, rebrilhantes de estrelas sem conto, que só desapareciam horas altas, quando a Lua surgia do horizonte numa vermelhidão de sangue, que ia aclarando à medida que subia no céu, até se transformar num disco pálido, que vogava na frieza da noite, a caminho do outro lado da Terra. Era por estas noites vagarosas e frias, quando em casa tudo era silêncio e todas as criadas dormiam, extenuadas, no cansaço dos dias trabalhados, que Maria Leonor se levantava da cama, sem ruído, enfiando os pés descalços e friorentos numas pantufas. Abrigava-se numa longa capa, cobria os cabelos com um velho lenço de lã e abria a janela do seu quarto de par em par, tremendo de frio e de uma comoção indefinível.
Sentava-se, então, numa cadeira, enrolava as pernas arrepiadas num cobertor e deixava-se ficar durante muito tempo imóvel, sob a grande luz do luar que entrava pela janela. Quando, depois de algumas horas, a Lua se escondia detrás do beiral do telhado, deixando o quarto imerso em sombra, Maria Leonor levantava-se, entorpecida, esfregando as mãos gretadas do cieiro e ia deitar-se, tiritando. Não dormia logo. Ficava com os olhos muito abertos, tentando penetrar a escuridão, ouvindo na sala de fora o bater do relógio numa cadência monótona de quartos de hora sempre iguais."
José Saramago in Terra do Pecado

Monday, November 08, 2004

Neverland

Estou vazia e demasiado cheia.
Tenho demasiadas coisas para contar, e nada para dizer.
Quero falar com alguém e não me apetece abrir o jogo com ninguém.
Tenho um pé de cada lado, vivo em dois mundos ao mesmo tempo e ao mesmo tempo não vivo em nenhum.

Thursday, November 04, 2004

Matthew

Hoje, durante o almoço, ouvi alguém falar sobre as eleições nos EUA, que curiosamente (ou não) foram vencidas pelo Mr. Bush.
No meio da conversa, aos poucos fui-me lembrando de uma foto que pus na parede do meu quarto. É um rosto branco, de sorriso escancarado e olhos azuis e inocentes. Conheci-o apenas por uns dias, o suficiente para nunca mais me esquecer daquilo que vi e ouvi naqueles dias. Chamava-se Matthew.
Estávamos na Tailândia, no XX Jamboree Mundial do Escutismo. Milhares de pessoas passeavam por entre tendas, estradas de terra, actividades diferentes. Todos sorridentes, todos diferentes, todos iguais.
O Matthew fazia parte de uma Patrulha norte-americana que estava no meu subcampo. Conheci-o num dia em que, embaraçosamente, decidiu cantar uma serenata a uma amiga.
"I don't understand why girls run away from me when I sing."
Nessa noite, Matthew deambulava pelo campo sozinho, tentando conhecer novas pessoas, trocando emblemas, oferecendo sorrisos e canções sinatrianas.
Era a noite gastronómica, a véspera da Passagem de Ano.
Os seus colegas tinham ficado no campo, não se misturavam com os asiáticos, tinham medo de não sei muito bem o quê. Se é que era medo.
Adoptámos o Matthew a partir daquele momento.
Fez-nos rir. E, num sorriso trémulo, contou-nos que os seus colegas o obrigavam a limpar o campo em sua vez. Que o seu pai, chefe da Patrulha norte-americana, lhe batia se ele não fizesse aquilo que os colegas lhe mandavam. Que, quando tinha trocado a sua farda com um escuteiro nigeriano, o pai o tinha obrigado a destrocar, porque a farda nigeriana não valia um terço do que valia a farda americana.
O pai de Matthew era grande, alto e gordo, de pele branca avermelhada pelo sol, mais parecia um camarão. As suas bochechas descaídas escangalhavam-se num esgar quando pedia aos rapazes tailandeses para não jogarem à bola ao pé do seu campo, e apertavam-se num sorriso de dentes amarelados quando impunha o seu discurso ao chefe inglês.
O pai de Matthew usava um chapéu à cowboy e tudo o que eu queria era dar-lhe um pontapé nas canelas.