Monday, October 25, 2004

Custódia


20/01/2004
"Emergency Room II
Ainda nas Urgências, passo por uma velhinha, de costas, numa cadeira de rodas. Na centro da sua cabeça, os seus fartos cabelos grisalhos são avermelhados. Ensanguentados. Uma enorme compressa branca cobre uma ferida, quiçá de uma queda. Observo e ando. Mais tarde, depois de atendida, espero o elevador enquanto a minha mãe conversa com uma colega. E lá continua a velhinha, de costas, na sua cadeira de rodas. De repente, uma porta abre-se e a acompanhante desta senhora sente-se na obrigação de mover a cadeira de rodas para permitir a passagem. De modo a que a velhinha já não está de costas para mim. Olho para a sua cara. Os seus olhos estão direccionados para mim. Um está cerrado, como se estivesse permanentemente colado. O outro, está visivelmente cego. E ouço um *click* no meu cérebro. Esta cara é-me familiar. - Ó Mãe… ó mãeeeeee! Esta… não é a Custódia? A Custódia criou a minha avó paterna. Viu-a crescer, casar, ter filhos e netos. Esteve sempre nos primeiros anos da minha infância, antes de eu ir para a Inglaterra. Lembro-me dela como fiel companheira da minha avó, lembro-me de a ver fazer a massa dos seus maravilhosos massapães para a minha primeira comunhão. Lembro-me de a ver cortar as couves para o caldo verde, sempre que se comia caldo verde. Lembro-me de quando ela, orgulhosamente, tomava conta de mim e me chamava a “sua menina”, porque era a primeira neta da Meninha, a filha que não teve. Lembro-me de quando ficou cega de um olho, que deixou de abrir (nunca compreendi porquê, só me disseram que a “Custóia” já não conseguia abrir o olho, doce inocência de criança). Quando fui para a Inglaterra nunca mais soube nada dela. Viemos morar para a Póvoa e, apesar de a minha avó continuar a visitá-la, nunca mais a vi. Até hoje. Num escasso segundo em que o meu olhar foi de encontro ao seu olhar morto. Senti-a despertar quando ouviu a voz da minha mãe, ouvi o seu pranto quando a minha mãe falou na minha avó, admirei o seu sorriso quando a minha mãe lhe disse que fui eu que a reconheci. A acompanhante dela diz que ela já não fala, que tem súbitos espasmos de alegria e repentinos ataques de choro de vez em quando. As suas reacções são como que automatizadas, já não são respostas a nada… Não quero acreditar. Prefiro acreditar que, naquele momento, algo reacendeu ali… uma recordação, uns breves flashes de memória que a impeliram a ter aquelas reacções… não sei. Sei que a imagem dela não me sai da cabeça.
Joui (in www.povoense.blogspot.com)"

24/10/2004
Hoje disseram-me que a Custódia morreu. Nunca mais a vi, mas a imagem dela a fazer massapães na minha cozinha e o sabor das amêndoas roubadas permanece.
Afinal, tudo o que temos são meras recordações, não?



Sunday, October 24, 2004

Susto?

Um apertão mais convincente no peito, mais difícil de ignorar. Sensação de sufoco e desconhecimento pelo que vem a seguir.
Um rapaz de 21 anos morreu, com qualquer coisa muito fulminante, que ninguém sabe o que é. Os médicos mandaram-no para casa descansar. E ele morreu.
Eu pensava em pneumonia, tuberculose e outras coisas afim, e se calhar a dor nas costas e a sensação de sufoco era só de estar mal deitada.
Mas há as horas e os dias em que não sabemos como é que a máquina funciona por dentro (até gostava de ver), quando é que ela vai parar, onde e como.
Porque vai mesmo parar, um dia destes.

Wednesday, October 20, 2004

Hoje Choveu

Hoje choveu, e a água jorrou do céu e das nuvens e sabe-se lá de onde mais. Uma impossível vontade de não sair da cama e saborear o calor por mais uns minutos. E a impossibilidade tornada real com um espirro maior e um termómetro.
O raio de luz, infinitamente veloz, rompeu o negro céu, inundou o quarto e o mundo de claridade por um instante. Um breve instante. Um rugido imponente envolveu tudo, acercou-se de tudo o que encontrou pela frente, com infindáveis vibrações.
Encolhi-me por momentos. Deixei o estore levantado, as pálpebras retomaram o seu descanso e deixei a febre levar-me no seu doce delírio.
Sweet dreams.